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A conspiração - Nanim Rekacz


 Texto en español en Ráfagas y parpadeos: "La conspiración" (45)

Traducido al portugués por José Eduardo Lopes

 
O dia em que se conheceram havia sido pré-configurado no cosmos: as constelações no sítio preciso do universo, os astros alinhados, e ambos sem expectativas algumas de encontrarem alguém a quem amar e por quem se sentir amados.
E assim foi. Passaram mutuamente despercebidos.



Publicado en Micro Lecturas


Qual impulso será o mais poderoso? - Nanim Rekacz

Texto en español en NOVA Argentina: ¿Cuál será el impulso más poderoso?
Traducido al portugués por José Eduardo Lopez
  
Descobriram um planeta de diamante na Via Láctea. Pequeno, denso, orbita em redor de um pulsar. Todos os joalheiros, coleccionistas e multimilionários do planeta Terra elucubram como se apoderar dele, ambicionam uma jóia talhada no seu carbono: uma argola, um diadema, um anel de casamento…Quem pudesse apoderar-se, ao menos, de uma lasca dum cume diamantino, dum pedacinho translúcido para engalanar uma orelha, incrustar num dente, encerrar na caixa-forte dum banco…Perdem o sono a imaginar o valor astronómico do metro quadrado de diamante. É um bem tão escasso na Terra e portanto, tão valioso. Mas duvidam…se houvesse muito, a cotação da preciosa pedra cairia em flecha.
Os habitantes desse planeta, que também nos descobriram, estão a calcular quando vale a água que desperdiçamos tão impunemente, ainda que nos sobre…E têem sede…

Nanim Rekacz

Mundos interiores - Nanim Rekacz

Texto en español en Químicamente impuro"Mundos interiores"
Traducido al portugués por José Eduardo Lopes
 
- Que lindo globo! – exclamei
Apenas pretendi ser amável com um menino que se sentou ao meu lado no banco da praça, junto a uma mulher que supus ser sua mãe.
- Não é um globo! – disse, muito sério.
- Não? E o que é então?
- Um planeta de sonhos.Os planetas de sonhos estão habitados do lado de dentro.
- Ah, que interessante! – respondi – e como sabes disso?
Olhou-me com pena.
- Todas as crianças o sabem, mas quando se tornam adultos, esquecem-no. Isso contou-me a minha mãe – disse, sorrindo para a mulher.
- Que lástima, eu não me lembrava disso. E como é que se entra no planeta dos sonhos?
- Adormecido. Quando acordas, o globo fura-se e os sonhos desaparecem.
- E de quem são os sonhos desse globo? Tu estás acordado, e a tua mãe também...
- São do meu irmãozinho – e pôs-se muito direito, com orgulho – está na barriga da mamã, e eu cuido dos seus sonhos. Até que nasça.


  Pubicado en Micro-Leituras
Nanim Rekacz

O duelo - Nanim Rekacz


Texto en español en NOVA Argentina: "El duelo"

Traducido al portugués por José Eduardo Lopez


- A minha velha gata está a morrer… - pensou.
Amanda, sobre a alfombra, grunhia. Ao acariciá-la, vibrou com um ronronar e as suas patas sacudiram-se, descontroladas.
- O que se passa, pequena? – perguntou
Quantos anos eram? Dez anos? Sim, mas já era grande ao vir da rua para casa com a barriga cheia de gatinhos. Pariu-os, ficou e foi dona e senhora, e companhia. Tinha o seu carácter próprio, vá que era refilona.
- Amandinha, Amandinha… - os olhos celestes de Amanda tornaram-se transparentes.
Primeiro foi uma lágrima que assomou, engrossou e rolou pela bochecha. Logo se seguiu o pranto, a borbotões. As recordações de uma década de vida partilhada trespassaram o seu coração como centelhas, facas afiadas, picadas de agulhas…
- Estás doentinha, Amanda? Vais morrer?
Um ronronar intenso, uma contracção muscular.
- O que devo fazer para que te permitas chorar? – pensava Amanda.

Nanim Rekacz

Inutilidade das fechaduras - Nanim Rekacz



Texto en español en Químicamente Impuro: "Inutilidad de las cerraduras"

Traducido al portugués por José Eduardo Lopes




Era um país sem muros nem fossos, com casas sem portas e janelas sem postigos. As pessoas fluíam sem ser-lhes requerida identificação, sem terem de pedir licença, sem tocar campainhas. Se alguém sentia fome e sentia o olor de um guisado, passava e sentava-se a uma mesa, e era bem-vindo. Se se tratasse de outro tipo de apetites da carne, introduzia-se no leito sempre amável de qualquer vizinho ou vizinha. Quem precisasse de satisfazer orgânicas necessidades intestinais, acorria prontamente a uma casa-de-banho que encontrasse ao passar no caminho. Isso não envergonhava ninguém.
Um dia, cruzando esse território, chegou um vendedor de cadeados, aldrabas e chaves.
As pessoas fizeram com esses elementos preciosos adornos como brincos, porta-lâmpadas, e até instrumentos musicais.
Se o vendedor não os tivesse vendido, tampouco teria passado fome.

  Pubicado en Micro-Leituras
Nanim Rekacz

A continuidade dos sonhos - Nanim Rekacz



Texto en español en Químicamente Impuro: "Continuidad de los sueños"

Traducido al portugués por José Eduardo Lopes


Havia, de um modo inexplicável, um encadeamento de sucessos nos meus sonhos. Os personagens reapareciam, alinhavando histórias surpreendentes. Durante o dia aguardava, ansiosa, a hora de dormir para espiar esse universo paralelo onde uma lógica diferente, pura e harmoniosa reunia seres, paisagens e sentimentos.
            Uma noite vi-a. Vi-me. Ela sorriu-me e eu sorri-lhe em troca. Sorri-me. Quando nos abraçamos, os nossos corpos fundiram-se.
Sou feliz agora. Já não preciso esperar que cheguem as noites.

Pubicado en Micro-Leituras
Nanim Rekacz

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka - Daniel Frini



Texto en español en Ráfagas y parpadeos: "Variaciones sobre 'La metamorfosis' de Kafka"

Traducido al portugués por José Lópes

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka I
- Ai, Virgem Santa! Que castigo! - dizia dona Samsa – O que é que vão dizer os vizinhos? E a honra da família? Não é suficiente que Gregor sofra uma metamorfose? Porquê, Senhor meu, ele tinha além disso, de se transformar numa mariposinha? (*)

(* ) Versão possível do original: mariposón,
gíria para homossexual; e que, neste caso,
também sugere a fusão das palavras mariposa
(um insecto) e maricón.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka II
Destino de esgoto, o de Gregor Samsa: no horóscopo chinês ele é rato.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka III
Em Praga, numa certa rua, numa certa esquina, Gregor Samsa suspira. Tocou-lhe em sorte viajar e conhecer mundo, e agora não suporta mais a sua limpa cidade natal. E estranha, com um nó na garganta, as lixeiras a céu aberto de Buenos Aires.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka IV
- Cortem! – gritou o director – E publique-se! Dois assistentes ajudaram Samsa a erguer-se de novo sobre as suas patas «Gregor – costumava filosofar a sua mãe – não há mal que não venha por bem!». Tinha razão. Ser um duplo de risco em publicidade a insecticidas, era um trabalho tão bom como qualquer outro.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka V
- Gregor Samsa! – gritou a esposa. Ele engoliu em seco. Ela estava irritada. Não lhe chamou “Goió”, nem “Gregory”, nem “Bára”(*) – como o apodava a rapaziada do bar – nem o tão íntimo e carinhoso “Bichinho meu” com que iniciavam as pegajosas noites de amor.

(*) Diminutivo de barata

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka VI
«O que é que me aconteceu?», pensou Gregor ao despertar dum sonho intranquilo. Viu-se na sua cama convertido num monstruoso ser rosado, lampinho, com quatro extremidades terminadas em dedos e uma pele suave e repugnante, tão diferente da dura carapaça que todos os insectos usavam em Praga.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka VII
«Estimado senhor Kafka», começava a carta, «entendo a sua necessidade de exprimir desesperação por uma sociedade que não aceita a diferença. Agradeço-lhe a fama imperecedoura que me conferiu o seu relato, Die Verwandlung (*). Mas, seria muito pedir-lhe que inclua nele um bicho fêmea? É que me sinto só!».
(*) A Metamorfose

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka VIII
- Repare, senhor Kafka – disse o editor – o mundo não está preparado para um relato deste tipo, tão obscuro, tão…como diria?...repugnante. Melhor, porque é que não faz com que Samsa se transforme, quando fica irado, num super-herói gigante e musculoso de cor verde? Seria um marco. Creia-me.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka IX
- Vago! – gritou o chefe de Samsa – Não vai trabalhar porque se encontra indisposto? Tolices! Você é um mau empregado! Não me venha com essa de se ter transformado num bicho. Já ouvi desculpas ridículas, mas isto é o cúmulo. Você sempre foi um gusano, um parasita, uma larva!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka X
- Papá, tenho algo a confessar-te – eu transformei-me! - És um travesti! - Não, papá! Transformei-me num bicho. - Que susto que me pregaste! Isso não é nada, filho. Há problemas piores…

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XI
- Gregor, acomoda as anteninhas, que a televisão está a ver-se com chuva!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XII
- Mamã, falta muito?
- Dois dias.
- Mamã, falta muito?
- Um dia.
- Mamã, falta muito?
- Não, já dá. Anda!
Gregor saiu feliz de casa. Era Carnaval. No meio dos disfarces ninguém se espantava por vê-lo, e podia percorrer os lugares de Praga que lhe estavam vedados no resto do ano.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XIII
Você sofre de Síndrome Confusional Agudo, provavelmente originado por uma endocrinopatia. Não se preocupe, vamos tratá-lo com Risperidona, e asseguro-lhe que melhorará notavelmente – disse o psiquiatra, enquanto coçava o seu ventre pardo e abaulado, e agitava as suas muitas patas, ridiculamente pequenas em comparação com o resto do corpo.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XIV
Nos esgotos de Praga, é costume ver-se a silhueta dum monstruoso insecto que aterroriza até os roedores que povoam os canos. As mães ratas assustam assim os seus filhos: - Se não comes os desperdícios, Gregor Samsa leva-te!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XV
Não é que não te queiramos, filho, mas podias ao menos não meter a tua cabeça na panela para comer a sopa? Para nós, os que ainda somos humanos, essa baba que soltas tem um gosto asqueroso.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XVI
Entendo o seu ponto de vista, senhor Samsa, mas o seu filho não pode viajar na cabina do avião. Deve despachá-lo numa jaula, para prevenir a zoonose. Qualquer dúvida que tenha, apresente-a ao senhor Kafka.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XVII
Não dá para acreditar, senhor polícia! Como é que eu poderia saber que era Samsa? Conheci-o de menino, uma formosura de criatura, e não se parecia em nada com essa que matei com sandaladas. Aqui tem a arma assassina! Não se manche com os pedaços que estão colados á sola.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XVIII
«Como diabos iria chupar o sangue dessa coisa? Seria venenoso?». As duas mulheres e o homem que acabava de submeter na casa ao lado, estariam infectados? Seriam humanos que se converteriam nisso, como os homens-lobo? «Porque diabos não me fiquei por Valáquia?», pensou o vampiro.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XIX
- Estúpido aprendiz de bruxo – disse o Bruxo Director – Você leu a Regra? Ãh? Aqui está, veja! – Não usar o feitiço Insectus em humanos. Não há retorno. O que é que eu digo agora a dom Samsa, que é o presidente da Cooperadora? E não me venha com essa de que Gregor o merecia por ser um lambe-botas!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XX
- Gregor, meu filho, a mamã e eu temos uma coisa para te dizer: és adoptado.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXI
- O que é que se poderia esperar da tua família – recriminava-lhe a esposa a Gregor – a tua irmã é um gato, a tua mãe é uma víbora e o teu pai um zangão!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXII
- Oxalá o meu pai se transforme num insecto! – disse a pequena Berta à sua amiga Antje, referindo-se ao senhor Zimermann. Quando Gregor despertou na manhã seguinte, encontrou-se sobre a sua cama convertido num ser monstruoso. Pequenas trocas das infidelidades conjugais.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXIII
Sétimo filho varão. Sexta-feira de Lua Cheia. Gregor apaixonado por Leyna Ahrends. Mas acabou-se o stock de lobisomens. Apenas sobraram insectos.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXIV
- Gregor? Sois vós? Faz tanto tempo que não nos vemos! Xi! Tu mudaste tanto!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXV
- Escute-me, Samsa, tenho que lhe pedir que não insista e se retire. Aqui estamos a filmar Alien! Entendeu? A-L-I-E-N.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXVI
Creio na reencarnação, creio no Karma, creio em vidas pretéritas; mas, não teria sido preferível ter morrido antes de me mutar nesta coisa?

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXVII
- Dê-lhe isso, dona Samsa, seja boazinha e deixe que Gregor venha jogar à bola connosco. Falta-nos uma marca de baliza. Dê-lhe, seja boazinha!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXVIII
- Filhos – disse a Rainha-mãe Alien – apresento-lhes Gregor, um primo que veio da Terra.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXIX
Nos túneis das cloacas de Praga há, por estes momentos, um certo vendedor de panos que, sem clientes que lhe comprem tecidos, aborrece-se soberanamente enquanto que, com as suas curtas patas, coça a terceira secção do seu abdómen, recordando, saudoso, a época em que era humano.

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXX
- Uau! – exclamou Samsa, mirando-se ao espelho – estas pastilhas batem forte!

Variações sobre «A Metamorfose» de Kafka XXXI
Com o tempo, Gregor Samsa acostumou-se a que o tratassem como a um bicho raro.


Publicado en MICRO-LECTURAS

O esquecimento fatal - Martín Gardella


Texto en español en Internacional microcuentista: "El olvido fatal"

Traducido al porqugués por Wilson Gorj

Apagaram-se as luzes do palco e um aplauso prolongado rompeu o silêncio da sala. O jovem mágico acabara de desaparecer em cena diante da atenção do público extasiado, consumando uma ilusão inexplicável e nunca antes alcançada. Foi o último número do ilusionista, que jamais conseguiu lembrar a segunda parte do truque.

Martín Gardella

Companhias - Gabriela Colombo



Texto en español en Gabriela Colombo: "Compañías".

Traducido al portugués.

No começo eu pensei que era minha vista. Eu as enxergava por toda parte. Pensei que era por viver grudada no monitor dez horas por dia. Comprei um protetor de tela, mas a situação não melhorou. De tempos em tempos, tentava esquivá-las ou pegá-las com a mão. Elas voavam de um lado para o outro.
Fui a um centro oftalmológico, onde me dilataram as pupilas à força de gotas ardidas. Fiquei impressionada ao descobrir que também com a visão distorcida eu as continuava enxergando. Por ali passa uma voando, por lá se escondeu outra... Essa que parece uma, na realidade são duas, uma ao lado da outra.
O resultado parcial da consulta foi fadiga visual.
— Você enxerga linhas brilhantes enquanto trabalha?
— Sim, às vezes eu enxergo umas espadas fluorescentes aparecendo nas laterais do monitor.
— "Flashes luminosos". Esse é o nome que dão para esse problema e o tratamento é com um colírio.
— E as sombras?
— Nós as chamamos “Moscas Volantes”. Nunca tentou pegar uma?
— Já, várias vezes…
— São descolamentos de retina. Geralmente começam a aparecer com a velhice. Esse não é o seu caso.
— Como se faz para eliminá-las?
— Não tem jeito. O melhor é ficar amiga das suas moscas e aprender a conviver com elas. Se algum dia perceber que aumentaram, venha logo.

Dei duas voltas pelo hall do consultório até acertar a porta do elevador... eu me sentia tonta. Deixei o carro estacionado, optei por andar. Perambulei pelo centro da cidade como entre trevas. As luzes eram difusas, não podia ler os cartazes, nem os números dos ônibus e menos ainda os nomes das ruas. Fiquei pensando nos cegos.
Quando cheguei em casa me deitei com os braços cruzados atrás da cabeça, apaguei a luz e caí exausta, com a imagem do oculista falando gravada nas minhas retinas. Dormi sossegada até sentir a presença de uma das sombras flutuando por cima do meu corpo. No meio de um arrepio, abri os dois botões pretos que tinha como olhos e me levantei, agitada, para espantá-las. Acendi o abajur e, como um autômato, todas as demais luzes que encontrei em casa. O efeito “pupilas” não tinha fim. Fui até o banheiro e acabei na cozinha tomando um copo de leite morno. A certa altura da vida, não se pode ter medo da escuridão... Antes de voltar para a cama, olhei bem se a luz do corredor iluminava boa parte do meu dormitório. A sombra parece que tinha recebido a mensagem e estava escondida atrás da porta. Cobri a cabeça com o lençol e fiquei com a ponta do nariz para fora para respirar melhor. Por dentro, lhe implorei que não saísse.
Naquela época, a minha única esperança eram os vidrinhos de colírio; cumpria o rito das gotas cinco ou seis vezes por dia. Qualquer coisa para não vê-las mais. Durante o dia, rodeada de gente, a questão fluía bem. Os problemas começavam com o entardecer, parecia que a escuridão as ajudava a se camuflarem melhor, elas se desinibiam.
Tentei entender porque não podia vê-las diretamente, cara a cara. Devia se tratar de alguma característica da visão humana, porque eu podia perfeitamente detectá-las pelas laterais e inclusive por trás de mim. Ao longo dos anos também comecei a senti-las; exalavam um hálito frio, desagradável. Eu vivia em casa com umas seis delas e confesso que me apavorava enxergar mais de quatro juntas por perto. Desde o início pensei em ignorá-las, negá-las e durante algum tempo, consegui manter um comportamento socialmente aceitável, mas um dia elas se enfureceram ou simplesmente se cansaram da convivência e começaram a me assediar de um modo inexplicável. Senti que era uma provocação. Não me deixavam fazer nada, às vezes giravam em torno de mim como um vendaval. Eu as classifiquei pelo nível de pavor que me geravam. Quando lia, elas se cruzavam rapidamente por cima dos livros e davam um efeito parecido com o piscar de olhos. Também deixavam marcas de vapor de água nos vidros e nos espelhos do banheiro, que eu via quando terminava de tomar banho.
Quase todas eram da mesma forma, mudavam de tamanho. Tinham extremidades laterais como se fossem braços; o que seria a cabeça era um todo, em forma de ovo e muito comprida. Pareciam ter um olho só ou uma mancha central por onde olhavam. Será que enxergavam? Não sei se enxergavam ou se só tinham um radar de movimentos. Sem boca, nem nariz nem nada parecido com um ser humano. Desses braços pendiam umas membranas pretas que se agitavam constantemente.
Um dia me desesperei e comecei a atacá-las: joguei um livro numa delas e espantei furiosamente as outras com bofetadas. Rápidas e com bons reflexos, algumas vezes conseguiam esquivar-se. Eu ficava pensando se elas sentiam dor quando eu as atravessava com meus braços. Será que sentiam alguma coisa? O que eu percebi é que perdiam um pouco a forma e, por sua vez, eu ficava tonta. Aquela vez eu devo ter corrido atrás delas durante uma hora sem parar, até ficar exausta. A batalha não tinha servido para nada e a indignação brotava de mim como gotas de suor ao vê-las em estado de contemplação.
Sonhei que saíam voando pela janela ou que se enfiavam dentro das sombras de onde surgiam, para não aparecerem nunca mais. Mas nada disso aconteceu.
Fui a uma igreja e conversei com um padre. Que reze, reze muito para encontrar paz interior, que jogue água benta em todos os quartos... que jante pouco... Deu uma benção especial para mim, outra para a casa e me entregou um montão de santinhos.
Gotinhas de colírio, água benta, orações... Uma amiga me disse que pendurasse alho atrás da porta, que tomasse um banho de imersão com sal grosso e que colocasse vinagre branco na testa. Tentei isso e outras táticas mais.
As noites eram cansativas e eu costumava acordar respirando seus hálitos imundos. Por um tempo, o que melhor funcionou foi um calmante que me receitou um médico. Uma maravilha encapsulada com efeito imediato: depois de dez minutos já me sentia atordoada. As sombras se aproximavam e eu cobria o rosto com o travesseiro para evitá-las. No máximo em meia hora me desligava e não reagia até o outro dia.
Decidi me mudar. Fiz isso duas vezes e cada vez que acabava de arrumar os móveis, apareciam como por passe de mágica. Acho que elas não gostavam da bagunça ou demoravam em me localizar. Na primeira vez que as vi, depois de várias horas abrindo caixas, não aguentei e comecei a chorar. Amaldiçoei a existência delas e comecei outra das minhas perseguições terapêuticas e descontroladas. Enquanto as perseguia, me perguntava se seriam as mesmas. Pareciam as mesmas.
Em uma festa tentei mostrá-las a uma vizinha. Dá para você ver aquela que está saindo da sombra da estante? É a mais agitada do grupo. A única coisa que ganhei foi aquele olhar medroso e desdenhoso, olhar de olhos curiosos que vibram ao descobrir alguma coisa fora do lugar. Infelizmente, esse olhar era o que sempre surgia depois da confissão das minhas companhias.
Dias depois do meu aniversário de setenta anos, aconteceu aquilo que havia desejado a vida toda: elas desapareceram. Foi de repente e sem aviso prévio. Eu as busquei por todos os cantos da casa e nada.
Jamais pensei que quando o momento desejado chegasse, eu ia me sentir tão agoniada. Fui visitar a minha irmã com a idéia de lhe contar o que tinha acontecido; ela era a única pessoa com quem eu podia conversar sobre o assunto. Cheguei ao seu apartamento, toquei a campainha e não me atendeu. Um vizinho saiu do prédio e aproveitei para entrar. Encontrei a minha irmã lendo o jornal na cama. Não havia percebido a hora: eram 8 da noite. Eu a chamei e não me escutou. Surda como uma porta havia ficado com os anos, pensei. Então mexi nas folhas do jornal. Surda e concentrada.
Vi que ela pestanejava e esfregava os olhos como se de repente tivesse um cisco no olho. Parei bem ao seu lado e ela ficou pálida quando me viu.
— Juanita, disse. E ela, assustada e com cara de nojo, me deu um golpe com o jornal e começou a correr atrás de mim pelo corredor.
— Para, Juanita, para que sou eu! — gritava eu assustada enquanto tentava me salvar dos pontapés. Fiquei completamente desorientada e me escondi atrás de um móvel.
Ás vezes, ela chora e reage mal quando eu me aproximo. Paciência, digo eu. E me dedico a lhe fazer companhia.


Gabriela Colombo

Madrugada - Laura Ramírez Vides


Texto en español en El patio de la morocha: "Madrugada".

Traducido al portugués por Beth 2Santoss.

Ouvi uma mulher gritar. O grito é longo e doloroso, do tipo que sai de adentro, das entranhas; profundo.
Eu sinto uma presença ao meu lado. Acordei tocando-me o seio. Um dedo toca a base do meu esterno.
Viro minha cabeça enquanto abro os olhos. Ai está em pé, olhando para mim; eu vejo sob a meia luz da madrugada que entra pelas aberturas da veneziana. Me mostra o braço todo manchado, a toco, e está pegajoso. Me levanto em um movimento lento. Te olho melhor e sua cara parece mal maquiada, com pinceladas grossas que rodeiam a boca, permeiam seu rosto, invadem o seu nariz. Lhe pergunto se está tudo bem. Confirma. Seus olhos indicam uma serenidade sábia. Agarro sua mão e juntas vamos com calma para o banheiro. Começo a lavá-la em silêncio. O sangue corre descolorindo esse corpo que eu amo tanto. A cerimônia foi interrompida pela minha voz.
- Está sangrando o nariz?
- Sim, mamãe.

Laura Ramírez Vides

Assim é a Vida - Laura Ramírez Vides



Texto en español en El patio de la morocha: "Así es la vida".

Traducido al portugués por Beth 2Santoss.


- Por que? Se eu sou pequenininha tenho que dormir só e vocês que são grandes dormem juntos?
Lógica implacável, molhada em lágrimas.
Três anos.

Laura Ramírez Vides

Um livro esclarecedor - Fernando Sorrentino


Texto en español en Badosa.com: "Un libro esclarecedor".

Traducido al portugués por Ana Flores


Ludwig Boi­tus: Stelzvö­gel, Go­tinga, 1972

No con­ciso pró­logo dessa obra, o pro­fes­sor Franz Klamm nos in­forma que o Dr. Ludwig Boi­tus vi­a­jou de Go­tinga a Huayllén-Naquén com o ex­clu­sivo pro­pó­sito de es­tu­dar in loco o po­der de atra­ção sim­bió­tica des­sas aves per­nal­tas po­pu­lar­mente co­nhe­ci­das como ca­legüi­nas, de­no­mi­na­ção quase una­ni­me­mente aceita na bi­bli­o­gra­fia es­pe­ci­a­li­zada em espanhol.

Essa obra vem pre­en­cher um sen­sí­vel va­zio so­bre o tema. An­tes das exaus­ti­vas in­ves­ti­ga­ções do Dr. Boi­tus – cuja ex­po­si­ção ocupa quase um terço do vo­lume –, pouco se sa­bia ci­en­ti­fi­ca­mente so­bre as ca­legüi­nas. De fato, salvo os frag­men­ta­dos e as­sis­te­má­ti­cos - e, ge­ral­mente, po­vo­a­dos de afir­ma­ções fan­ta­si­o­sas ou di­fi­cil­mente com­pro­vá­veis – es­tu­dos de Bu­lo­vic, de Bal­bón, de Lau­ren­cena e ou­tros, fazia-se ne­ces­sá­ria, até a data, uma fi­de­digna fun­da­men­ta­ção ci­en­tí­fica que per­mi­tisse in­da­ga­ções mais profundas.

Nesse tra­ba­lho, o Dr. Boi­tus parte da pre­missa - tal­vez ques­ti­o­ná­vel - de que a ca­rac­te­rís­tica pre­do­mi­nante das ca­legüi­nas é uma per­so­na­li­dade po­de­ro­sís­sima (entendendo-se per­so­na­li­dade no sen­tido em­pre­gado por Fox e sua es­cola): a tal ponto po­de­rosa, que, por sua sim­ples pre­sença, as ca­legüi­nas pro­vo­cam nos de­mais se­res vi­vos uma sim­bi­ose bas­tante pro­funda à sua pró­pria condição.

Es­sas aves são en­con­tra­das ex­clu­si­va­mente na la­goa de Huayllén-Naquén. Seu nú­mero é muito ele­vado e tal­vez su­pere um mi­lhão de exem­pla­res, pois sua caça está proi­bida, sua carne não é co­mes­tí­vel e suas pe­nas não têm va­lor co­mer­cial. Como é co­mum às aves per­nal­tas, alimentam-se de pei­xes, ba­trá­quios, lar­vas de mos­qui­tos e ou­tros insetos.

Em­bora pro­vi­das de asas bem de­sen­vol­vi­das, ra­ra­mente voam e, quando o fa­zem, ja­mais ul­tra­pas­sam os li­mi­tes da la­goa. São um pouco mai­o­res que as ce­go­nhas, mas ao con­trá­rio des­tas, não têm há­bi­tos mi­gra­tó­rios. O dorso e as asas são ne­gros, che­gando a ser azuis; a ca­beça, o peito e o ven­tre, de um branco ama­re­lado; as pa­tas, de um ama­relo pálido.

Seu ha­bi­tat, a la­goa de Huayllén-Naquén, é de pouca pro­fun­di­dade, mas bem ex­tensa. Como – ape­sar das rei­te­ra­das so­li­ci­ta­ções neste sen­tido – não há pon­tes so­bre ela, os ha­bi­tan­tes do lo­cal se vêem obri­ga­dos a dar uma grande volta para al­can­çar a ou­tra mar­gem, o que tem pro­vo­cado, além de con­tí­nuas quei­xas do único jor­nal lo­cal, que a co­mu­ni­ca­ção en­tre as duas mar­gens seja pouco freqüente.

Claro que, apa­ren­te­mente, com mais ra­pi­dez e fa­ci­li­dade po­de­riam atra­ves­sar a la­goa com a sim­ples uti­li­za­ção de pernas-de-pau e até sem es­tas, já que em seu lo­cal mais pro­fundo a água não ul­tra­passa o ní­vel da cin­tura de um ho­mem de es­ta­tura me­di­ana. Mas como – mesmo de um modo tal­vez in­tui­tivo – os ha­bi­tan­tes co­nhe­cem o po­der sim­bió­tico das ca­legüi­nas, o fato é que pre­fe­rem não ten­tar a tra­ves­sia e op­tam, como já men­ci­o­nado, por ro­dear a la­goa que, por sua vez, é cer­cada por um ex­ce­lente ca­mi­nho asfaltado.

Esta cir­cuns­tân­cia, en­tre­tanto, não im­pede, e tal­vez até fa­vo­reça – e isso se pode jus­ti­fi­car, em vir­tude dos pou­cos re­cur­sos de sub­sis­tên­cia ofe­re­ci­dos pela re­gião – que o alu­guel de pernas-de-pau para os tu­ris­tas seja o ne­gó­cio mais ren­tá­vel de Huayllén-Naquén. A falta de uma con­cor­rên­cia sé­ria e a ine­xis­tên­cia de nor­mas ofi­ci­ais a esse res­peito têm feito com que o preço do alu­guel das pernas-de-pau seja, evi­den­te­mente, muito ele­vado, ape­sar de, sem dú­vida, tal exor­bi­tân­cia ser a única saída para os co­mer­ci­an­tes se res­sar­ci­rem de sua ine­vi­tá­vel perda.

O que existe é uma lei da pro­vín­cia cujo al­cance, bas­tante li­mi­tado, exige que nos lo­cais onde se alu­gam pernas-de-pau haja, bem vi­sí­vel e com le­tras gar­ra­fais, um car­taz com a ad­ver­tên­cia de que seu uso pode pro­vo­car al­te­ra­ções psi­cos­so­má­ti­cas de certa gra­vi­dade nos usuários.

Em ge­ral, os tu­ris­tas pre­fe­rem des­co­nhe­cer tal aviso e até rir-se dele, se bem que não se pode as­se­gu­rar que to­dos o leiam, mesmo quando é ine­gá­vel que os co­mer­ci­an­tes cum­pri­ram ri­go­ro­sa­mente a exi­gên­cia de exi­bir o car­taz em lu­gar bem vi­sí­vel, e sabe-se que as au­to­ri­da­des são in­fle­xí­veis quanto a esse as­pecto, em­bora seja pouco freqüente a fis­ca­li­za­ção, sem­pre pre­ce­dida de um aviso, ape­sar de este cos­tu­mar che­gar pou­cos mi­nu­tos an­tes do fis­cal que, en­tre­tanto, cum­pre fi­el­mente sua ta­refa, se bem que não se co­nhe­çam ca­sos em que al­gum co­mer­ci­ante te­nha sido multado.

Já de posse de suas pernas-de-pau, os tu­ris­tas, so­zi­nhos, em pa­res, ou em ale­gres e rui­do­sos gru­pos de três, cinco ou dez pes­soas, se in­ter­nam na la­goa de Huayllén-Naquén, com o pro­pó­sito de al­can­çar o po­vo­ado da mar­gem oposta, onde po­dem ad­qui­rir, a pre­ços re­du­zi­dís­si­mos, exó­ti­cos pei­xes em con­serva, cuja venda cons­ti­tui o prin­ci­pal meio de vida dessa po­pu­la­ção ribeirinha.

Du­rante os pri­mei­ros du­zen­tos ou tre­zen­tos me­tros, os tu­ris­tas avan­çam ju­bi­lo­sos, tro­cando brin­ca­dei­ras en­tre eles e es­pan­tando, com seus gri­tos e ri­sa­das, as ca­legüi­nas que, como to­das as aves per­nal­tas, são ex­tre­ma­mente as­sus­ta­di­ças. Mas, à me­dida que se in­ter­nam cada vez mais na la­goa, suas ma­ni­fes­ta­ções de ale­gria e exul­ta­ção tornam-se mais tê­nues, ao mesmo tempo em que au­menta a den­si­dade de ca­legüi­nas por me­tro quadrado.

Agora são tan­tas e tan­tas, que só com muita di­fi­cul­dade os tu­ris­tas con­se­guem abrir ca­mi­nho en­tre elas. Por ou­tro lado, pa­rece que, pro­te­gi­das por seu grande nú­mero, elas per­dem qual­quer te­mor, em­bora a ra­zão de sua qui­e­tude tal­vez possa ser en­con­trada na im­pos­si­bi­li­dade con­creta de se mo­ve­rem. Seja por que mo­tivo for, o certo é que os gri­tos já não são su­fi­ci­en­tes para afastá-las, de modo que é mis­ter re­cor­rer a pau­la­das ou ta­pas e, mesmo as­sim, é pouco o es­paço ce­dido pe­las calegüinas.

É neste mo­mento que, em ge­ral, os tu­ris­tas se ca­lam: já não há brin­ca­dei­ras nem ri­sa­das. En­tão – e só en­tão - per­ce­bem um pe­sado mur­mú­rio que co­bre a la­goa toda e que nasce de mi­lha­res de gar­gan­tas de mi­lha­res de ca­legüi­nas. Em re­la­ção ao tim­bre, tal mur­mú­rio não é muito di­fe­rente do que cos­tu­mam emi­tir os pom­bos, só que de muito maior intensidade.

Pe­ne­tra, as­sim, nos ou­vi­dos e nos cé­re­bros dos tu­ris­tas tão pro­fun­da­mente, que quase chega a fa­zer parte de­les, até o ponto em que, pouco a pouco, tam­bém os tu­ris­tas co­me­çam a emi­tir o mesmo som: no iní­cio, de um modo evi­den­te­mente bas­tante im­per­feito, mas logo já se torna im­pos­sí­vel dis­tin­guir en­tre a voz dos hu­ma­nos e a das calegüinas.

Quase si­mul­ta­ne­a­mente, os tu­ris­tas per­ce­bem, com uma sen­sa­ção in­terna de as­fi­xia, que, até onde o olhar al­cança, tudo são ca­legüi­nas: já não po­dem dis­tin­guir a terra firme nem a água da la­goa. À sua frente e atrás, à di­reita e à es­querda, vis­lum­bram um con­tí­nuo e mo­nó­tono de­serto, em branco e em preto, de asas, bi­cos, pa­tas e penas.

Às ve­zes, so­bre­tudo quando o grupo de tu­ris­tas é nu­me­roso, cos­tuma ha­ver en­tre eles um mais lú­cido ou me­nos exal­tado, que in­tui a con­ve­ni­ên­cia de re­gres­sar, de­sis­tindo do pro­jeto de ad­qui­rir a pre­ços re­du­zi­dos os ra­ros pei­xes em con­serva ven­di­dos na mar­gem oposta. Mar­gem oposta: mas qual é a mar­gem oposta? Como vol­tar, se já per­de­ram toda no­ção so­bre de onde vêm e para onde vão? Como vol­tar se, com efeito, já não há pon­tos de re­fe­rên­cia, se tudo, em preto e em branco, é um con­tí­nuo e mo­nó­tono de­serto de asas, bi­cos, pa­tas e pe­nas? E olhos: dois mi­lhões de olhos que pis­cam inexpressivamente.

Ape­sar da evi­dên­cia de que já não é mais pos­sí­vel vol­tar atrás, aquele tu­rista mais lú­cido ou me­nos exal­tado dirige-se a seus com­pa­nhei­ros e pa­te­ti­ca­mente lhes diz: “Ami­gos! Vol­te­mos por onde vi­e­mos!”. Mas seus com­pa­nhei­ros já não en­ten­dem seus es­tri­den­tes gras­na­dos, tão di­fe­ren­tes do mur­mú­rio an­te­rior. E, ape­sar de eles tam­bém res­pon­de­rem com gras­na­dos, ainda têm cons­ci­ên­cia de que con­ti­nuam sendo humanos.

O medo toma conta de­les, já não po­dem ra­ci­o­ci­nar com cla­reza e to­dos que­rem fa­lar ao mesmo tempo. O coro de gras­na­dos é inin­te­li­gí­vel, não con­se­guem se en­ten­der e, em­bora quei­ram, não po­dem avi­sar uns aos ou­tros que to­dos já são ca­legüi­nas. As ou­tras ca­legüi­nas, as mais an­ti­gas da­quela co­mu­ni­dade, que até en­tão ha­viam per­ma­ne­cido no si­lên­cio in­di­fe­rente do es­pec­ta­dor que co­nhece a trama, ir­rom­pem to­das jun­tas, elas tam­bém, a gras­nar agu­da­mente, com to­das as suas forças.

É um gras­nar ge­ral, uma ex­plo­são de triunfo e de con­quista que, par­tindo desse pri­meiro e es­treito cír­culo, estende-se rá­pida e tem­pes­tu­o­sa­mente por toda a lar­gura e ex­ten­são de Huayllén-Naquén, até ul­tra­pas­sar seus li­mi­tes e al­can­çar as ca­sas mais afas­ta­das do vi­la­rejo. Os ha­bi­tan­tes ta­pam os ou­vi­dos com os de­dos e sor­riem. Por sorte, a al­ga­zarra não dura mais do que cinco mi­nu­tos e, so­mente quando cessa com­ple­ta­mente, os co­mer­ci­an­tes do lu­gar co­me­çam a fa­bri­car tan­tos pa­res de no­vas pernas-de-pau quan­tos fo­ram os tu­ris­tas que se in­ter­na­ram na lagoa.

Fernando Sorrentino

[De El me­jor de los mun­dos po­si­bles, Bu­e­nos Ai­res, Edi­to­rial Plus Ul­tra, 1976]